quarta-feira, 8 de junho de 2016

Entrevista com Dr Zan Mustacchi

zan
O que fez um garoto, filho de imigrantes egípcios, sonhar em tornar-se um médico geneticista e pediatra, hoje referência quando o assunto é Síndrome de Down? “As oportunidades”, diz Zan Mustacchi. Ainda menino, há mais de 55 anos, Zan mudou-se para o Brasil com a família, onde se formou, constituiu família e se firmou na profissão.
Entre outros títulos e atividades, Mustacchi é doutor e mestre pela Universidade de São Paulo; responsável pelo Ambulatório de Genética do Hospital Infantil Darcy Vargas; diretor clínico do Centro de Estudos e Pesquisas Clínicas de São Paulo; membro da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down; do Departamento Científico da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro do Departamento Científico de Genética da Sociedade de Pediatria de São Paulo e do Down Syndrome Medical Interest Group e presidente do Instituto Ibero-Americano de Pesquisas e Diretrizes de Atenção à Síndrome de Down, além de ser autor dos livros livros “Síndrome de Down – Aspectos Clínicos e Odontológicos”, “Genética Baseada em Evidências – Síndromes e Heranas”, “Tocando no Futuro, Ensinando Genética”, “Guia do Bebê com Síndrome de Down”, entre outros capítulos em livros de diversas especialidades.
Março, no calendário, é o mês dedicado à Síndrome de Down. Nesta edição de abril, MercNews traz entrevista com Dr. Zan, para falar sobre os aspectos médicos e sociais do tema em pauta.
Por Marianna Fanti
MercNews – O que levou um menino imigrante sonhar em se tornar médico?
Zan Mustacchi – Para que qualquer um de nós tenhamos nossa profissão, desde presidente da República até o faxineiro, a palavra-chave para todo mundo é oportunidade. Então sou médico porque tive a oportunidade.
MN – Com quase 40 anos de profissão, como descreveria essas crianças especiais a quem dedicou quase toda sua vida? 
ZM – Diria que são crianças que apresentam um comprometimento que afeta seu desenvolvimento intelectual e ou físico. Síndrome de Down é a cromossomopatia mais frequente entre a população humana.
MN – Quando e por que se interessou por pacientes com Síndrome de Down? 
ZM – Na verdade foi quando comecei a fazer residência médica e tive a oportunidade de atender uma criança severamente comprometida. Na época eu fazia residência no primeiro hospital com UTI pediátrica da América do Sul. Essa criança não estava na UTI, mas, merecia estar, então recorri ao chefe da UTI. Era um final de semana prolongado, hospital com capacidade para 280 leitos, lotado, e uma UTI com 15 leitos, dos quais 13 estavam ocupados, só havia duas vagas. Quando solicitei a vaga, o chefe da UTI foi ver a criança comigo para verificar se justificava o pedido. Ao ver a criança, sem nenhuma avaliação clínica, ou considerar minha avaliação prévia da indicação da UTI, ele olhou e disse: Zan, não vou conceder essa vaga. Eu perguntei o porquê e ele disse: porque a criança é mongolóide. Na época, há 40 anos, esse era o termo usado. Eu respondi: mas, Dr. essa criança vai falecer. E ele respondeu: eu tenho a função de te capacitar para atender qualquer condição de grande risco e favorecer a sobrevida de qualquer criança, então o meu papel é ensinar como você vai cuidar dessa criança, sem UTI. E na verdade o que eu fiz foi cuidar dessa criança. Ele me orientou da forma mais pertinente e me capacitou da melhor forma possível, mas, acabei perdendo essa criança depois de umas quatro horas, durante a madrugada. No dia seguinte voltei à UTI para falar com o colega, e ele disse: Você não vai assinar o atestado (de óbito)? E eu disse: não, não consigo elaborar instrumentos para justificar esse óbito. Então ele respondeu: vou te ensinar, é assim, assim, assim, etc. E foi me caracterizando as justificativas. Olhei para o lado e vi que os dois leitos continuavam vazios e foi nesse momento que aprendi uma coisa muito importante: as crianças com Síndrome de Down, sobre as quais tínhamos aprendido que não era para fazer nada porque morriam cedo, nem sequer tinham a oportunidade de experimentar tratamentos para ver se sobreviveriam. Hoje, particularmente, acredito que aquela criança não tinha mesmo condições de ter sobrevivido, ainda se tivesse tido a oportunidade, mas oportunidade ela não teve e talvez esse tenha sido o gatilho que definiu minha atenção para esse grupo de pessoas. Depois disso, tive a oportunidade de estagiar na França, com o professor Jérôme Lejeune, médico e geneticista que, em 1959, caracterizando a população que tinha um diagnóstico de mongolismo – chamado de idiotia mongoloide – até então, retirou esse nome, rebatizando como Síndrome de Down, em homenagem a John Langdon Haydon Down que, em 1866, caracterizou esse fenótipo. Portanto, de 1959 para cá não é mais mongolismo, é Síndrome de Down. E eu fui o único brasileiro que teve oportunidade de estar ao lado de Jérôme Lejeune. Acho que essa foi outra oportunidade que construiu meu direcionamento.
MN – Ao logo de sua carreira, o senhor encontrou empecilhos por lidar com pacientes com limitações? Quais?
ZM – Acho que a palavra empecilho é muito pesada, mas, encontrei dificuldades, sem dúvida nenhuma. A primeira foi a negativa naquela UTI; a segunda foi a resistência às cirurgias cardíacas, o que fez com que um grupo de médicos novos e arrojados decidisse investir e levar cirurgia a essas crianças, mesmo naquela época, quando nem o grande chefe das cirurgias cardíacas aprovava esse tipo de cirurgia em crianças com Síndrome de Down. Mas nós investimos nisso, conseguimos conquistar espaço e mostrar, em um intervalo de cinco anos, excelentes resultados. Sem dúvida, nos dois primeiros anos tivemos muitas perdas, mas conseguimos um crescimento e uma melhora muito grande na atenção. E conseguimos padrões de cuidados para cardiopatias congênitas na população com Down, o que fez com que também o Governo do Estado de São Paulo investisse em imunizações primárias, configurando a importância de que se essas pessoas tivessem imunizações mais amplas e preventivas reduziria os custos de complicações e internações, melhorando a qualidade de vida e sobrevida dessas pessoas, por meio da criação da Secretaria de Pessoas com Deficiência.
MN – Em que momento da sua carreira confrontou o sonho de tudo aquilo que sonhou como médico, com a realidade dos pacientes que trata?
ZM – Vejo que sonhos são ideias, projetos, intenções e que claramente são conseguidos. Quando elaboro aquilo que a sociedade chama de sonho, no meu ponto de vista já tenho como pressuposto a possibilidade de atingi-lo; sendo assim, não é um sonho, é um objetivo. Eu costumo dizer que o possível todo mundo faz, nós temos que fazer o impossível e a gente faz.
MN – Comente sobre a dificuldade em dar a notícia aos pais de uma criança com Síndrome de Down.
ZM – Dar a notícia sobre o nascimento de uma criança com Síndrome de Down é uma resposta que com certeza não tem como ser agradável, porque você vai dar uma notícia de conceito emocional previamente construído, que está desabando. Costumo dizer que ter filhos é eternizar o nosso DNA, e quando quero eternizar meu DNA tenho a intenção de aperfeiçoá-lo e fazer tudo de melhor para o meu filho, dar tudo o que eu não tive. Porém, a informação que é dada hoje para o indivíduo, sobre o filho dele ter Síndrome de Down, é completamente diferente da informação dada àquela família, há 15, 20 anos. Voltando à questão, eu não consigo traduzir esse momento como um modelo agradável, feliz, mas eu posso amenizar o estresse, a dor e a surpresa. Eu posso amenizar a sensação de perda, caracterizando e avaliando essa criança junto, e ao lado dos pais, mostrando a eles no momento do diagnóstico que o bebê é uma criança como qualquer outra, que mama, tosse, ri, chora, enfim, faz tudo que qualquer oura faz. Então, se essas crianças tiverem oportunidades, certamente elas desenvolverão potenciais. Então, temos que levar as oportunidades até o indivíduo com Síndrome de Down, diferente de nós – ditos comuns -, que vamos atrás das oportunidades.
MN – Quais as principais dificuldades enfrentadas pelos pais de crianças com Síndrome de Down? 
ZM – A primeira dificuldade é intrínseca de entender que eles receberam um filho diferente do que esperavam, que terão um trabalho diferente, e terão que se organizar dentro de um modelo de vida um pouco diferente do que a expectativa primária. Quando o filho vira um individuo não comum, com Síndrome de Down, ele terá situações de necessidades especiais, acolhimento, estímulos específicos, necessidade de uma atenção à saúde mais rigorosa, porque, neste caso, não posso deixar a coisa acontecer. Então tenho que fazer uma prevenção, uma imunização, um projeto nutricional muito bem estipulado, falar sobre a importância do aleitamento materno, mas enfatizar tudo isso de forma mais clara em relação à criança com Síndrome de Down, caracterizar que ela terá dificuldades que podem ser sanadas e modeladas. Por exemplo, aprendemos no colegial o que é matriz, na matemática, mas, você saber fazer uma? Eu também não. Só aprendi para fazer o vestibular, e mesmo assim perdi quatro horas para aprender, para cair uma única pergunta, que eu errei. Então ficou claro para mim, hoje, que matriz não serve para nada, exceto para quem vai fazer algo muito específico, que necessite dessa possibilidade, apesar que hoje tenho computadores que podem me favorecer sem eu ter que fazer esse cálculo a lápis. Então, o instrumento facilitador tem que ser usado no indivíduo com Síndrome de Down. Ele tem que ter o direito de levar uma calculadora, não acho que ele tenha que saber a tabuada, ou quem descobriu o Brasil, ou os EUA. Para que adianta saber tudo isso? Isso influi na sua sobrevida ou qualidade de vida? No seu dia a dia para que serve a fração? Você precisa saber o que é 1/2, 1/4, e talvez 3/4, tendo o cuidado de ensinar que um quarto também pode ser um dormitório e três quartos também. Fora isso, o terço só é usado na igreja. Também não precisa aprender 1/8, porque não vai chegar na pizzaria e pedir 1/8 de pizza, que corresponde a um pedaço. Então, tenho que saber ensinar meu aluno, que tem comprometimento das habilidades intelectuais, qual é o melhor instrumento para ele aprender aquilo. Aí consigo resultados excelentes.
MN – Como vê a educação em escolas regulares e especiais?
ZM – Acho excelente. Em primeiro plano porque as pessoas comuns, que convivem com um indivíduo diferente em sala de aula vão aprender muito, principalmente aquilo que nós não aprendemos. Eu fiz escola pública e não lembro de um indivíduo deficiente ou negro em sala de aula, a não ser no final do curso, no ginásio, quando tive um amigo negro que me marcou por dizer que queria fazer Agulhas Negras, e certamente o fez. Então, em primeiro lugar, quem aprende é o aluno comum. Em segundo lugar, o indivíduo com comprometimento terá oportunidade de se capacitar melhor. E a esse indivíduo com comprometimento intelectual não posso cobrar em momento nenhum o conteúdo programático igual ao individuo comum, mas preciso dar oportunidades de ele entender, de forma paralela e bem orientada, o conteúdo programático. Isso significa que ele vai entender a diferença entre uma fração e um pedaço, mas ele não precisa entender o que é 1/3, 1/8, muito menos 1/11 avos ou 1/12 avos, e porque não existe 1/9 avos ou 1/10 avos, porque isso causa uma desorganização até no entendimento primário do aluno comum.
MN – Cite os principais cuidados que uma criança com Síndrome de Down requer, em comparação a uma criança comum.
ZM – Além dos cuidados primários que temos que ter com qualquer criança, em qualquer lugar do planeta, esse indivíduo tem que ter cuidados dirigidos à imunização, aleitamento materno, aspecto cardiológico, controle da função cardíaca, controle da tireoide, controle mais rigoroso da audição e visão, e seguir as diretrizes do Ministério da Saúde de 2012, que orienta as pessoas com Síndrome de Down. Seguindo essas diretrizes, esse indivíduo terá uma excelente qualidade de vida.
MN – Quais são as doenças que mais acometem esses indivíduos?
ZM – Os comprometimentos clínicos que mais se expressam em indivíduos com Síndrome de Down são cardiopatia congênita, disfunção da tireoide, disfunções relacionadas à audição, visão, diabetes, alterações da absorção alimentar, já que o ritmo nutricional dele tem que ser muito bem elaborado porque ele costuma ter o intestino um pouco mais longo, tendência à obesidade, além do comprometimento intelectual, que tem que ser muito bem acompanhado.
MN – Com vê o tratamento multidisciplinar – fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional – aplicado nessas crianças?
ZM – Vejo que o indivíduo deve ter oportunidade de fazer fisioterapia, terapia ocupacional, mas em meio a uma população com 204 milhões de habitantes, onde temos pelo menos 350 mil indivíduos com Síndrome de Down, a população dos profissionais da estimulação não consegue dar cobertura a mais do que 5% dessa população, de tal forma que eu diria que pelo menos 90% da população com Síndrome de Down não tem acesso a esse profissional, considerando redes pública e privada. Além do mais, esses estímulos são bons, mas não são absolutamente necessários. Mas eu diria que nutrição e imunização estão na base desse alicerce.
MN – Qual a expectativa de vida hoje de indivíduos com Síndrome de Down?
ZM – É correto dizermos que a expectativa de um indivíduo comum hoje está entre 75 a 85 anos, enquanto que a expectativa de uma pessoa com Síndrome de Down está entre 60 e 70 anos. Então, concordo plenamente em dizer que as expectativas estão muito próximas, mas não são iguais. Por outro lado, há 15 anos a expectativa de pessoas comuns era de 60 a 70 anos, enquanto dos Downs era de 25 a 30. Ou seja, ao longo de dez anos, pessoas comuns ganharam dez anos, enquanto indivíduos com Síndrome de Down dobraram sua expectativa de vida.
MN – Existe certa negação por parte de algumas famílias em aceitar as limitações dos indivíduos com Síndrome de Down?
ZM – Não diria que existe uma negação, diria que existe um despreparo e uma desinformação com relação às perspectivas, o que gera uma condição de temor daquilo que pode ser oferecido, e seus resultados. Eu acompanho uma série de Downs que trabalha, enquanto vejo 80% da população de uma cidade que não trabalha, e ganha sem fazer nada.
MN – Como lidar com essa síndrome em diferentes níveis sociais? 
ZM –Informando a população de todos níveis sociais de tudo aquilo que os Downs podem fazer, sem precisar desses profissionais. Hoje entendo que a primeira porta de sustentabilidade de um povo é a nutrição, e a segunda é a educação. Com nutrição e educação consigo uma saúde melhor, com menor custo. Quando falo em nutrição não falo no programa Fome Zero, do Governo Federal. Porque quem faz uma nutrição errada, não nutre o cérebro, sempre digo o seguinte: se déssemos uma bolacha à base de farinha de trigo ou grão-de-bico, sardinha e ovo, nós teríamos um povo alimentado e nutrido intelectualmente. O que eu não consigo entender é porque isso não foi feito. A intenção talvez seja maquiavélica.
MN – Qual principal lição de vida que aprendeu convivendo com essas crianças e famílias?
ZM – A coisa mais importante é a oportunidade, e a segunda é acreditar.
MN – Qual seu maior sonho/objetivo profissional? 
ZM –Essa, talvez seja a chama que inflama nossa vida, a vontade de fazer cada vez mais. É uma chama interna. Meu objetivo é fazer com que a população como um todo, mas especificamente a população com a qual eu trabalho tenha melhores qualidades, a partir de oportunidades direcionadas e lapidadas.
MN – O senhor diria que a dificuldade maior está em lidar com as crianças ou com os anseios e medos dos pais?
ZM – Acho que a dificuldade maior é lidar com a sociedade como um todo, com a pequena desinformação que ainda existe. Mas acho que ela é mutável, e modelável.
MN – Qual mensagem deixaria aos pais de crianças com Síndrome de Down?
ZM – Acreditem!   Fonte
Beijos  Simone Santiago Marques

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